Angra Jazz 2023

(Fotos por Rui Caria)

Leonel Santos

Se nos primeiros anos era apenas o Jazz que me movia, com o tempo foi-se tornando evidente para mim que a própria ilha fazia parte do festival, e que ela contribuía para a sua singularidade.
A invulgar beleza da cidade, o colorido berrante das casas e dos Impérios, a simpatia e humor dos terceirenses, o bucolismo do verde que afoga e afaga e que a quietude ruminante acentua (o verde do chão que se afunda aos nossos pés), a paisagem ora arrebolada ora fraguenta e negra, o Monte Brasil como uma mulher grávida, as alcatras com bolo levedo e vinho dos Biscoitos, as cracas e o boca negra acabado de pescar em São Mateus, os banhos nos Biscoitos e na Silveira, o sol interrompendo a chuva e a humidade, o acre intenso das Furnas do Enxofre, os mistérios negros, as criptomérias a fazer de sebes, as hortenses a debruar as estradas, e o fim do dia nas Cinco Ribeiras à espreita do Pico escondido por detrás das brumas de São Jorge; tudo passou tranquilamente a fazer parte do Festival.
Um festival a contrariar a insularidade da pérola do Atlântico, uma orquestra improvável, uma festa onde os amigos (das outras ilhas também, e do continente e até estrangeiros) se aperaltam e se encontram para celebrar o Jazz, um festival onde tudo desliza sobre rolamentos contrariando bonacheiro as adversidades; um festival que prima pela programação irrepreensível e sabedora, que se quer abrangente, que tem em conta a diversidade do público.

Orquestra AngraJazz com Jeffery Davis
Já referi a orquestra, uma aposta com vinte anos, teimosa e cara, da Associação AngraJazz, mas que a cada ano ganha pertinência. Improvável, como a classificou a grande Sheila Jordan, com um palmarés invejável de convidados, entre Paula Oliveira, Mário Laginha, Ricardo Toscano ou Jeffery Davis, com quem tocou este ano. Ágil e sápida na interpretação de clássicos entre Benny Golson e Wayne Shorter, um prazer para os ouvidos, e foi assim que o Angra Jazz 2023 arrancou.
Sob a direcção do maestro de sempre, Pedro Moreira, a orquestra revelou a sua mais sólida secção rítmica de sempre (Antonella Barletta, Paulo Cunha e Nuno Pinheiro), e para além dos solistas de sempre, com destaque para Rui Borba, Paulo Borges e André Ribeiro, e os (muito) jovens Nuno Rodrigues, Tomás Reis e Guilherme Costa, para além do convidado, mestre Jeffery Davis.
A afirmação da maturidade da mais velha orquestra de Jazz amadora nacional e, também na sua generosidade, a confirmação da sua razão de ser.

Renee Rosnes Quintet
Confesso que apesar de o segundo concerto do festival me ter dado imenso prazer, no convencional da fórmula que foi, a minha atenção esteve com frequência virada para a insuperável secção rítmica de Peter Washington e Carl Allen: quatro orelhas absolutas, das que adivinham, nem uma nota a mais, uma pontuação ao nano-segundo, energia e loquacidade!
Mas houve mais: igualmente loquaz, o piano da veterana Renee Rosnes soube ser lírico e elegante e simultaneamente enérgico quando necessário, e confirmando-se como líder na distribuição dos papéis. A nossa curiosidade estava virada para a prestação da jovem saxofonista Nicole Glover (que é também a saxofonista da banda feminina de Rosnes, Artemis), que se revelou sempre à altura, numa forma curiosa que parecia crescer em todos os solos, diferente do mais seguro veterano saxofone de Steve Wilson, um monstro do seu instrumento.
Temas de Renee Rosnes, Galapagos, For the Moment, Life Doesn’t Wait (com uma entrada que me sugeriu Hermeto Pascoal), ou de Thelonious Monk, Ba-Lue Bolivar, Now, de Boby Hutcherson, Diana de Wayne Shorter e Isotope de Joe Henderson, num concerto de alto nível a encerrar a primeira noite.

Ben Allison Trio
O trio de Ben Allison inspira-se na fórmula dos trios sem bateria de Jimmy Giuffre dos anos 50 e 60 na exploração de repertórios de Leonard Bernstein, Carla Bley, Jim Hall ou Herbie Nichols, compositores sobre que se debruçaram em Angra do Heroísmo.
Trio de saxofone, guitarra e baixo, os três veteranos são músicos, investigadores e instrumentistas eruditos; confluentes também na longa amizade e aventuras. E sem essa novidade que a música de Giuffre constituía, ela surge aqui tranquila, e o modelo ideal para a exploração destes universos (mais cultos e intimistas); empresa que eles cumpriram com acerto e gosto.

Coreto
A modernidade no festival esteve por conta do dodecateto Coreto. Colectivo nascido da fábrica Porta-Jazz, com direcção de João Pedro Brandão, o Coreto apresentou em Angra a música do disco «A Tribo», de 2021. Longa peça, dividida em sete partes, com diferentes dinâmicas e colorido, como uma peça de teatro, ou uma história, e com distintos solistas-protagonistas, a peça confirmou o Coreto como um dos mais importantes projectos nacionais, e os seus membros, inequivocamente, a nata dos músicos de Jazz nacional. Peça de grande erudição, e com momentos muito bonitos, acusou, no entanto, a meu ver, na execução, um excesso de escrita e falta de estrada. Mas um concerto do Coreto é sempre uma aventura e um prazer, da música dos detalhes, das combinações tímbricas inesperadas, nos movimentos da orquestra que esclarecem o drama.

Immanuel Wilkins Quartet
O último dia do festival teve, a abrir, o seu momento mais alto. A expectativa era grande na estreia de Immanuel Wilkins; um jovem que, com 26 anos de idade e dois discos editados na Blue Note, arrebatou todos os prémios para o melhor disco de Jazz e melhor músico do ano. À frente de uma banda igualmente jovem, o vulcão Wilkins explicou ao que vinha. O concerto começou como um espiritual, belíssimo, que se prolongou por dez minutos, antes de atacar o segundo tema, fulgurante. A empatia na banda é absoluta, uma máquina impetuosa, com o saxofone a incluir-se na secção rítmica, dir-se-ia um Charlie Parker moderno (ou um Rudresh Mahantappa ou um Jon Irabagon), notas jorrando em catadupa, os glissandos no piano completando Wilkins, a bateria e o baixo num todo.
Percorrendo os dois álbuns e alguns temas novos, num registo que é clássico e inequivocamente Jazz, enérgico e voluptuoso e convincente nas baladas, Immanuel Wilkins explicou em hora e meia as razões de ser considerado um dos grandes saxofonistas da actualidade. 

Vivian Buczek Group
O festival completou-se com uma voz, como é tradição, satisfazendo o público do Jazz vocal, mais acessível.  A cantora escolhida, Vivian Buczeck, veio do frio, uma sueca de ascendência polaca, com uma boa presença de palco e uma voz de boa amplitude na interpretação dos standards e alguns originais (apesar de alguns erros grosseiros, na interpretação de Throw it Away de Abbey Lincoln ou Walz for Debby de Bill Evans), conseguindo com facilidade os aplausos do público. Banda competente, com o contrabaixista em evidência.

Ao longo dos dias do festival, o AngraJazz organizou vários concertos, o Jazz na Rua, na Biblioteca Luís da Silva Ribeiro e estabelecimentos comerciais da cidade, com bandas locais, e entre os quais o Wave Jazz Ensemble, e ainda um quarteto saído do Coreto Porta-Jazz.

O AngraJazz terminou, confirmando-se como um dos grandes festivais de Jazz internacional portugueses. Em 2024 o AngraJazz faz 25 anos e a festa promete mais e melhor; assim o poder político seja capaz de reconhecer o mérito de um festival que é um dos mais importantes eventos culturais dos Açores e mesmo do país.    

(Leonel Santos esteve no AngraJazz a convite do festival)

(Este texto foi publicado no Diário Insular)

Antecipação

O AngraJazz regressa como um dos mais importantes, consistentes e longevos festivais de jazz portugueses, de acordo com uma fórmula que combina criteriosamente grupos e músicos internacionais e nacionais. Seis concertos apenas: Orquestra Angrajazz com Jeffery Davis, Renee Rosnes Quintet, Ben Allison Trio, Coreto Porta-Jazz, Immanuel Wilkins Quartet e Vivian Buczek Group, de 4 a 7 de Outubro em Angra do Heroísmo.

Sobre a Orquestra Angra Jazz, a «menina dos olhos» da Associação AngraJazz que organiza o festival, o menos que haverá a dizer é que é ela é um fenómeno de improbabilidade e resistência, superando as adversidades da insularidade. E pur si muove! E no entanto ela vive!, e no entanto ela persiste, contra ventos e marés, tempestades e anticiclones, teimosa e generosa.

À semelhança de outros anos, a Orquestra tem como convidado, em 2023, o vibrafonista, compositor, líder e professor Jeffery Davis, um desafio que os músicos superarão.

A primeira noite termina com o quinteto da pianista Renee Rosnes, uma pianista com provas dadas e uma longa história de projectos bem sucedidos – 17 álbuns! – e encontros com a nata do Jazz. Canadiana de origem (de onde são também Oscar Peterson e Paul Bley), Rosnes mudou-se para New York onde começou a tocar na banda de Joe Henderson, com vinte e quatro anos. A partir daí ela tornou-se numa das mais requisitadas pianistas de Jazz, tendo tocado com Ron Carter, Billy Drummond, Tony Bennett, Greg Osby, Niels-Henning Ørsted Pedersen, entre inúmeros outros, e foi durante cinco anos a pianista de serviço da SFJAZZ Collective. Editou este ano o segundo disco da Artemis, In Real Time, uma banda feminina onde tocam também Noriko Ueda, Allison Miller, Ingrid Jensen, Nicole Glover e Alexa Tarantino; e para que contribuiu com as composições e direcção.
Sólida, fluente e enciclopédica, Renee Rosnes vem a Angra com uma banda de luxo:  Steve Wilson e Nicole Glover nos saxofones, Peter Washington no baixo e Carl Allen na bateria.

A segunda noite abre com o trio do contrabaixista Ben Allison, com Steve Cardenas na guitarra e Ted Nash em saxofones e clarinete; uma formação que evoca o Jazz singular do trio de Jimmy Giuffre dos anos 50 e 60 do século passado. É um trio de amigos, músicos que se conhecem há décadas (e já passaram até por Angra em formações diferentes), e que vêm emprestando a singularidade desta forma a projectos e cancioneiros alheios, como foi o Somewhere Else – West Side Story Songs de 2019 (um olhar sobre o West Side Story, como o nome sugere) ou Healing Power – The Music of Carla Bley, dedicado à compositora e pianista.Música intimista, mas pródiga, fecunda e única, a música de Carla Bley, pela mão de três grandes músicos, dará lugar ao segundo concerto da noite.

O Coreto é uma das mais importantes alargadas formações nacionais. Dirigido por João Pedro Brandão, o Coreto é um dodecateto de oito sopros e secção rítmica que prima pela inquietude, que começa no repertório original, e prossegue no atipicismo dos arranjos, com combinações instrumentais singulares. «Modernidade, erudição, engenho, … música cheia, séria, convicta, sem hesitações e sem concessões», «no equilíbrio instável entre composição e improvisação», escrevi a propósito de Analog, disco de 2017. E, enfim, com João Pedro Brandão está a nata do Jazz do Norte, que é o mesmo que dizer a nata do Jazz nacional.

E enfim, para a última noite estão reservados o Jazz portentoso e inequívoco do jovem Immanuel Wilkins e a voz da cantora Vivian Buczek.
Estrela em ascensão fulgurante, Imanuel Wilkins (e recorrendo de novo às minhas notas) surpreende pela maturidade como saxofonista e como compositor. Wilkins é um saxofonista completo, ágil nos tempos rápidos, denso e emocionante nas baladas. Coltrane, Charlie Parker e Ornette, passando por Wayne Shorter estão lá, mas o som que retira é um híbrido bastante personalizado: a tradição e o futuro num único solo.

Enfim, para o fim da noite o Angra jazz programou uma voz, como vem sendo hábito, e de forma a satisfazer os apreciadores do Jazz vocal. Vivian Buczek é uma cantora (de que conheço apenas os discos) sueca de ascendência polaca, com seis discos editados, com um percurso de interpretação de standards do Jazz, no que denota agilidade e acerto. A confirmar, no Centro Cultural e de Congressos de Angra do Heroísmo.

Leonel Santos
3 de Outubro de 2023